segunda-feira, 4 de maio de 2020

AINDA RESTA ESPERANÇA

Recentemente, na porta do supermercado, rolava uma conversa interessante num grupo de pré-adolescentes sobre a pandemia, o isolamento social e a contaminação pelo coronavírus. Me pareceu que eles eram moradores das redondezas e estavam ali tentando arrumar algum dinheiro para ajudar em casa.

Quando eu estava próximo, ouvi um deles, que aparentava exercer liderança sobre os demais, falar muito convicto:
- A gente tem que ter cuidado com o "perdisgoto"!
Imediatamente um outro retrucou:
- Tomar cuidado como, se tem esgoto pra todo canto na favela?
Um terceiro complementou, cheio de certeza:
- Tem até gente que tem vala passando dentro da casa...e depois na favela tá tudo perto de esgoto!
Então o primeiro, indignado e aos gritos, resolveu colocar os pingos nos "is", soletrando aquela palavra difícil de entender:
- É "PER-DIS-GO-TO" PORRA! CAMBADA DE MOLEQUE BURRO!
E, abaixando a voz, resolveu explicar para o grupo, em tom quase professoral:
- "Perdisgoto" é nojento, mas não é esgoto...

Respirei aliviado. Apesar de falar a palavra de forma incorreta, ali havia alguma esperança. Disfarcei que ia pegar um carrinho para fazer compras para ouvir (bisbilhotar, na verdade) o restante da aula. E ele continuou.
- Lembram daquele moleque que mora lá naaa...naaa... que o apelido dele é chuveirinho? O apelido é porque ele fala cuspindo na gente, não é?
Rapidamente todos balançaram a cabeça positivamente. E ele continuou...
- Então, "perdisgoto" é aquele cuspe que sai da boca sem cuspir e que cai na gente quando ele fala. O tal vírus pode tá ali.

Eta moleque porreta, pensei! E já ia me afastando satisfeito com a explicação objetiva e correta, à moda dele, afinal o importante é comunicar, passar a ideia. Simplesmente maravilhoso ver como esses jovens aprendem com facilidade, mesmo diante da adversidade extrema.

Ao perceber que todos silenciaram para ouvi-lo, o jovem com ar de professor resolveu continuar sua aula pública, mais compenetrado e convicto ainda do que quando começou:
- Entenderam? "Perdisgoto" não tem nada a ver com esgoto. "Perdisgoto" faz mal pra saúde! Esgoto não (faz mal). A gente pode até se banhar que não vai acontecer nada.


Foto: Joédson Alves














Como assim, pensei? Paralisei com aquele absurdo que acabara de ouvir. E apesar da vontade imensa de me meter na conversa, resolvi escutar mais um pouco para ver haveria uma explicação lógica, mesmo que não fosse convincente, para tal afirmação. E o menino continuou a falar...e, então, disparou uma frase que soou como um golpe fatal e derradeiro na esperança que eu havia sentido poucos minutos antes, e a esperada explicação lógica veio com sua última frase:
- Vocês não viram o presidente falar?

Quase tive um treco! Demorou um pouco, mas passado o susto e avaliando melhor a situação, concluí que posso continuar acreditando que há salvação. Afinal, aquele jovem era um exemplo de que o aprendizado é muito natural e dinâmico para essa moçada. Da mesma forma que ele aprendeu que o "perdisgoto" pode transmitir o coronavírus, ao ouvir pesquisadores e professores na televisão, também aprendeu que esgoto não faz mal, ao ouvir a ignorância presidencial através da mesma televisão.
O veículo de informação foi o mesmo, embora as fontes de informação tenham sido bem diferentes e, principalmente, distintas nos seus objetivos.

Resignado, e sem alternativas viáveis naquele exato momento, tive que respirar fundo e me recuperar aos poucos. E enquanto retornava à minha realidade de classe média, pensava com meus botões e com mais convicção ainda: "É nessa juventude que nossas esperanças se renovarão. Portanto, nossa luta tem que ser por uma educação crítica e que os leve à emancipação"!


Crônica do meu primo querido Jeferson Salazar em sua página no dia a dia do Rio de Janeiro.

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